Pré-Operatório: O que deve ser avaliado para uma correta anestesia?

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A Avaliação Pré-Anestésica (APA) é um pilar fundamental da segurança do paciente e uma das principais responsabilidades do anestesiologista. Mais do que uma simples consulta, é um ato médico complexo que visa estratificar riscos, otimizar o paciente e planejar a melhor estratégia anestésica.

O que é a Avaliação Pré-Anestésica (APA)?

Ela é um requisito obrigatório estabelecido pela Resolução CFM 1.802. É crucial entender que a não realização da APA constitui negligência médica e pode acarretar processos legais.

Objetivos Principais da APA

Nossa avaliação foca em três pontos centrais:

  1. Estado de Saúde: Realizamos uma anamnese e exame físico detalhados.
  2. Estratificação e Redução de Riscos: Identificamos comorbidades e otimizamos o paciente.
  3. Planejamento Anestésico: Definimos a técnica, orientamos o paciente e obtemos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Lembrete: Não há um intervalo mínimo padrão entre a APA e a cirurgia; isso geralmente é definido pela instituição. Além disso, o anestesiologista que realiza a APA não precisa ser, obrigatoriamente, o mesmo que administrará a anestesia no dia do procedimento.

Estratificação de Risco

Classificação ASA (American Society of of Anesthesiologists)

Esta é a classificação mais universal do estado físico do paciente:

  • ASA I: Paciente saudável, sem comorbidades.
  • ASA II: Comorbidades leves, tabagismo, etilismo.
  • ASA III: Comorbidades graves ou mal controladas.
  • ASA IV: Condição sistêmica grave com ameaça à vida.
  • ASA V: Paciente moribundo.
  • ASA VI: Morte encefálica (doador de órgãos).

Se o procedimento for de emergência, adicionamos a letra “E” (ex: ASA IV-E).

Exames Pré-Operatórios: Pedir com Critério

Não pedimos exames de rotina para todos. A solicitação deve ser baseada na clínica e no porte cirúrgico:

  • Hemograma: Indicado para idosos e em cirurgias com perda sanguínea esperada.
  • Eletrólitos: Necessário em pacientes com doença renal, diabetes, ou que usam medicações que causam alterações hidroeletrolíticas (como diuréticos).
  • Eletrocardiograma (ECG): Para homens > 40 anos e mulheres > 50 anos com doença sistêmica, diabéticos, suspeita de doença cardiovascular ou fatores de risco presentes.
  • Radiografia de Tórax: Indicada na suspeita de edema, pneumonia, atelectasia, em idosos, tabagistas de longa data (> 20 anos) e pacientes com antecedentes de doenças cardíacas ou pulmonares.
  • Coagulação: Essencial em pacientes com doença hepática, história de distúrbios de coagulação, uso de quimioterapia ou medicamentos que alteram a coagulação.
  • Teste de Gravidez: Para mulheres em idade fértil.

Risco Cardíaco e Capacidade Funcional

Para cirurgias não cardíacas, usamos os Critérios de Lee Modificados para estratificar o risco cardíaco. Os 6 fatores de risco são:

  1. Cirurgia de alto risco (intraperitoneal, intratorácica, vascular).
  2. História de coronariopatia.
  3. História de insuficiência cardíaca.
  4. Doença cerebrovascular.
  5. Diabetes mellitus insulino-dependente.
  6. Insuficiência renal (Creatinina > 2 mg/dL).

A chance de eventos cardiovasculares aumenta com o número de fatores: 0 fatores (0,4%), 1 fator (0,9%), 2 fatores (6,6%) e 3 ou mais fatores (11%).

Um dos indicadores mais práticos é a Capacidade Funcional (METs). Precisamos que o paciente tenha, no mínimo, 4 METs para autorizar a cirurgia. Se o paciente tiver < 4 METs (ou desconhecido) e fatores de risco de Lee, ele pode precisar de testes não invasivos.

Fluxograma de estratificação e redução de riscos cirúrgicos segundo os critérios clínicos e capacidade funcional do paciente — avaliação pré-anestésica.
Fluxograma de estratificação e redução de riscos. Fonte: Acervo de aulas do Grupo MedCof.
  • Timing pós-Angioplastia: Deve-se aguardar idealmente 14 dias após angioplastia com balão e de 6 a 12 meses após angioplastia com stent para cirurgias eletivas.

Otimização de Populações Especiais

  • Pulmonar: Pacientes com DPOC ou submetidos a cirurgias cardiotorácicas podem necessitar de espirometria pré-operatória. O tabagismo deve ser suspenso idealmente 14 dias antes. Esses pacientes se beneficiam de anestesia peridural.
Exame de espirometria. Fonte: Pinterest.
  • Renal: Pacientes com DRC/IRA têm alto risco de complicações. Exigem screening de eletrólitos, hemograma, coagulação e TFG.
  • Hepatobiliar: Pacientes com cirrose são avaliados pelos critérios de MELD e Child-Pugh. Pacientes Child A ou MELD < 10 podem ser submetidos a cirurgias eletivas complexas. Classificações piores, apenas se for estritamente necessário.

Critérios para classificação de Child-Pugh

EncefalopatiaAusenteConfusão mentalComa
AsciteAusenteModerada *Importante **
Albumina> 3,5 g/dl> 2,8 < 3,5 g/dl< 2,8 g/dl
Bilirrubina total< 2 mg/dl> 2 < 3 mg/dl> 3 mg/dl
Bilirrubina total ***< 4 mg/dl> 4 < 10 mg/dl> 10 mg/dl
Tempo/Protrombina< 4,0 seg> 4,0 < 6,0 seg> 6,0 seg
Pontos/parâmetro123
Pontos totais5-67-910-15
ClassificaçãoABC
*Ascite compensada com uso de diurético
**Ascite descompensada com uso de diuréticos
***Na cirrose biliar 
  • Reumatológico: O uso de corticoides e imunomoduladores é um desafio. Metotrexato e corticoides geralmente são mantidos. Se houver suspeita de supressão do eixo adrenal, pode-se realizar dose de ataque com hidrocortisona.
  • Nutrição: A desnutrição aumenta o risco de infecção e deiscência de suturas. Avaliamos com albumina, pré-albumina, transferrina e classificações como o NRS 2002.
  • Paliativos: Usamos a classificação de Karnofsky. Geralmente, um resultado > 70 é necessário para indicar procedimentos cirúrgicos.
Tabela da Classificação de Karnofsky, com níveis de 100% a 10%, usada para avaliar o estado funcional e prognóstico do paciente antes de procedimentos cirúrgicos.
Classificação de Karnofsky. Fonte: Acervo de aulas do Grupo MedCof.

Jejum e Risco de Broncoaspiração

Este é um ponto crítico de segurança. O jejum visa prevenir a aspiração pulmonar do conteúdo gástrico e a subsequente pneumonite química, que tem prognóstico reservado e mortalidade de até 70%.

Os protocolos atuais são mais flexíveis:

  • 2 horas: Líquidos claros (sem resíduos).
  • 4 horas: Amamentação.
  • 6 horas: Refeições leves e fórmula infantil.
  • 8 horas: Refeições pesadas.

Atenção aos pacientes de “estômago cheio”: Mesmo em jejum, devemos considerar pacientes com alto risco de broncoaspiração, como:

  • Diabéticos (neuropatia/disautonomia).
  • Pacientes em trabalho de parto.
  • Abdome agudo, oclusão intestinal ou íleo paralítico.
  • Politrauma ou TCE/HIC.
  • Usuários de análogos de GLP-1 (ex: Ozempic).
  • História de gastroparesia ou regurgitação.
Tabela com causas de estômago cheio e risco aumentado de broncoaspiração, incluindo abdome agudo, gastroparesia, diabetes, vagotomia cirúrgica e uso de análogos de GLP-1.
Risco de broncoaspiração. Fonte: Acervo de aulas do Grupo MedCof.

Airway: A Avaliação da Via Aérea

A falha no manejo da via aérea é uma das principais causas de morbimortalidade anestésica.

A História Clínica

O principal indicador de via aérea difícil (VAD) é o histórico de VAD prévio. Devemos perguntar ativamente sobre:

  • Manejos de via aérea anteriores (intubação difícil? IOT prolongada?).
  • Radioterapia cérvico-facial.
  • Cirurgias de cabeça, pescoço ou coluna cervical.
  • Condições associadas: Diabetes, Artrite Reumatoide, Bócio, Acromegalia, Espondilite Anquilosante, tumores, etc..

O Exame Físico

  • Classificação de Mallampati: Avalia a visibilidade da úvula. É feita com o paciente sentado.
    • Classe I: Vê palato mole, fauce, úvula e pilares.
    • Classe II: Vê palato mole, fauce e úvula (ápice).
    • Classe III: Vê palato mole e base da úvula.
    • Classe IV: Não se vê o palato mole.
    • Importante: Mallampati, isoladamente, não é capaz de predizer VAD.
Ilustração da Classificação de Mallampati, mostrando as classes I a IV conforme a visibilidade da úvula e do palato, usada para prever dificuldade de intubação.
Ilustração da Classificação de Mallampati. Fonte: Acervo de aulas do Grupo MedCof.
  • Preditores de VAD (2 ou + = possível VAD):
    • Mallampati III ou IV.
    • Abertura da boca < 3 cm.
    • Distância esternomentoniana < 12,5 cm.
    • Distância tireomentoniana < 3 dedos médios.
    • Extensão cervical limitada (paciente não consegue estender o pescoço).
    • Retrognatismo.
    • Mobilidade mandibular limitada (Upper lip bite test).
Ilustração do Upper Lip Bite Test, apresentando as classes I, II e III, conforme a capacidade do paciente de morder o lábio superior — teste para prever via aérea difícil.
Upper lip bite test. Fonte: Acervo de aulas do Grupo MedCof.
  • Preditores de Ventilação por Máscara Facial Difícil (Mnemônico OBESE):
    • Obesidade (IMC > 26 kg/m²).
    • Barba.
    • Envelhecimento (Elderly > 55 anos).
    • Sons ao dormir (Roncos).
    • Edentado (Ausência de dentes).
  • Via Aérea Fisiologicamente Difícil: O paciente pode não ter anatomia difícil, mas seu quadro hemodinâmico (hipotensão, trauma, choque) torna a intubação complexa e arriscada.
  • Obesidade: Não é, isoladamente, um preditor de via aérea difícil (intubação), mas é um preditor de ventilação com máscara difícil (IMC > 26).

Complicações e Manejo da Via Aérea

Posicionamento para Intubação

O objetivo é alinhar os eixos oral, laríngeo e faríngeo. A posição correta é a “sniffing position”.

  • Utilizamos um coxim suboccipital para alinhar o tragus na altura do esterno.
  • Em pacientes obesos, usamos o método da rampa (elevação de tronco e cabeça).

Classificação de Cormack-Lehane (Laringoscopia)

O que vemos durante a laringoscopia:

  • Grau I: Maior parte da fenda glótica visível.
  • Grau IIA: Parte posterior da fenda glótica visível.
  • Grau IIB: Apenas as cartilagens aritenóides são visíveis.
  • Grau IIIA: Epiglote visível com sua elevação.
  • Grau IIIB: Epiglote aderida à laringe.
  • Grau IV: Não se visualiza nada.

Nota Prática: Pacientes Cormack I-IIA geralmente permitem intubação. Graus IIB-III podem necessitar de auxiliares como o bougie. Graus IIIB-IV podem exigir broncoscopia.

Algoritmos de Via Aérea Difícil (VORTEX)

Devemos ter um plano claro para quando a intubação falha. O VORTEX considera 3 “linhas de vida” (dispositivos):

  1. Ventilação não invasiva (Máscara Facial).
  2. Intubação orotraqueal.
  3. Dispositivo supraglótico (Máscara Laríngea).

São permitidas no máximo 3 tentativas em cada linha de vida (a menos que haja um “game changer”), e pelo menos uma deve ser feita pelo médico mais experiente.

O Plano de Ação (A, B, C, D)

Se a APA identificou uma VAD, seguimos um plano:

  • Plano A: Ventilação com máscara facial e intubação traqueal.
    • Falha na Intubação -> Vai para o Plano B.
  • Plano B: Manutenção da oxigenação e inserção de Dispositivo Supraglótico (VRS).
    • Se tiver sucesso na ventilação com o VRS, “Pare e Pense”: 1. Acordar o paciente; 2. Intubar através do VRS; 3. Prosseguir sem intubar; 4. Via aérea cirúrgica.
    • Falha na ventilação com VRS -> Vai para o Plano C.
  • Plano C: Tentativa final de ventilação com máscara facial.
    • Se sucesso -> Acordar o paciente.
    • Falha (CICO) -> Vai para o Plano D.
  • Plano D: Acesso emergencial à parte frontal do pescoço.
    • Realizar cricotireoidostomia. Este é o cenário “Não Consigo Intubar, Não Consigo Oxigenar” (CICO).
Fluxograma de Plano de Ação. Fonte: Acervo de aulas do Grupo MedCof.

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