
A cirurgia de catarata evoluiu de um procedimento focado puramente na restauração da transparência óptica para uma sofisticada intervenção refrativa. No centro dessa transformação está a lente intraocular (LIO).
A seleção de uma LIO não é mais uma escolha singular, mas uma complexa equação clínica que envolve a ciência dos materiais, o design biomecânico, a física óptica e um cálculo biométrico preciso.
Para o oftalmologista em formação, dominar o arsenal de LIOs é fundamental, não apenas para o sucesso refrativo, mas para a prevenção de complicações de curto e longo prazo.
Fundamentos das Lentes Intraoculares
A performance de uma LIO é ditada por suas características físicas mais básicas. A interação entre o material, a arquitetura da lente e a óptica define a estabilidade, a biocompatibilidade e o perfil de complicações a longo prazo.

Dicotomia dos Materiais Acrílicos: Hidrofílico vs. Hidrofóbico
O debate entre os polímeros acrílicos hidrofílicos e hidrofóbicos é centrado em um trade-off clínico fundamental: prevenção da Opacificação da Cápsula Posterior (OCP) versus riscos de biocompatibilidade e complicações do material.
LIOs Acrílicas Hidrofóbicas:
Com baixo conteúdo de água (tipicamente <5%), este material é o padrão-ouro para a prevenção da OCP. Pesquisas demonstram de forma robusta sua superioridade sobre as LIOs hidrofílicas, resultando em escores de gravidade de OCP significativamente mais baixos e, crucialmente, taxas muito menores de capsulotomia Nd:YAG. A eficácia na prevenção da OCP não é puramente química. É um fenômeno biomecânico: o material hidrofóbico “pegajoso” (tacky) promove uma forte adesão à cápsula posterior. Esta adesão, combinada com o design de borda quadrada (square edge) , cria um efeito de “encolhimento” (shrink-wrap) que forma uma barreira mecânica, impedindo fisicamente a migração das células epiteliais do cristalino (LECs) para o eixo visual.
A principal desvantagem das LIOs hidrofóbicas é a formação de glistenings — microvacúolos de água dentro do polímero da LIO.Embora a presença de glistenings seja comum, seu impacto clínico na qualidade da visão permanece controverso e é frequentemente considerado insignificante.
LIOs Acrílicas Hidrofílicas:
Caracterizadas por um alto conteúdo de água (18–38%), essas LIOs são notavelmente mais flexíveis. Elas exibem um desdobramento mais controlado e “sem esforço” dentro do olho. Esta maleabilidade as torna mais resistentes a danos por pinça ou marcas de dobra, sendo uma excelente opção para cirurgiões em treinamento. Além disso, demonstram maior biocompatibilidade uveal, tornando-as uma escolha teórica preferível em olhos com histórico de uveíte ou diabetes.
A desvantagem, além da taxa de OCP significativamente mais alta , é o risco de calcificação pós-operatória. Embora não haja casos confirmados de calcificação em LIOs acrílicas hidrofóbicas, a calcificação é uma complicação conhecida e devastadora das LIOs hidrofílicas.
Este risco de calcificação cria uma contraindicação absoluta: LIOs hidrofílicas não devem ser implantadas em pacientes com alta probabilidade de necessitar de cirurgias futuras envolvendo a injeção de ar ou gás intraocular, como vitrectomia pars plana (PPV) ou ceratoplastia endotelial (DMEK/DSAEK).
Tabela 1: Análise Comparativa dos Materiais de LIOs
| Propriedade | Acrílico Hidrofóbico | Acrílico Hidrofílico | Silicone |
| Conteúdo de Água | Baixo (<5%) | Alto (18–38%) | N/A |
| Risco de OCP (Taxa de YAG) | Muito Baixo | Alto | Baixo |
| Risco de Glistenings | Presente (impacto visual debatido) | Ausente | Ausente |
| Risco de Calcificação | Não relatado | Risco Conhecido.(Contraindicado com ar/gás) | Raro (Associado à Hialose Asteroide) |
| Manuseio Cirúrgico | Desdobramento rápido/agressivo | Desdobramento suave e controlado | Desdobramento muito rápido |
| Ideal para Treinamento | Não | Sim (resistente a danos por pinça) | Não |
| Biocompatibilidade Uveal | Boa | Excelente | Boa |

Relevância Clínica do Design: Peça Única (1-Piece) vs. Três Peças (3-Piece)
O design arquitetônico da LIO dita seu local de implante pretendido e suas interações com as estruturas uveais.
- LIOs de Peça Única: A óptica e as hápticas são fabricadas a partir de um único bloco do mesmo material (geralmente acrílico hidrofóbico). São projetadas exclusivamente para implante dentro do saco capsular.
- LIOs de Três Peças: A óptica (feita de acrílico ou silicone) é fundida a hápticas feitas de um material diferente e mais rígido (como polimetilmetacrilato – PMMA, polipropileno ou polivinilidenofluoreto – PVDF). Este design é versátil e pode ser implantado com segurança no saco capsular ou no sulco ciliar.
Possíveis complicações:
- Uveíte: Inflamação crônica pela liberação de pigmento e mediadores inflamatórios.
- Glaucoma: A dispersão de pigmento obstrui a malha trabecular, causando hipertensão ocular secundária.
- Hifema: O atrito erosiona microvasos irianos, causando sangramento (hifema) recorrente.
O manejo da síndrome UGH induzida por LIO de peça única no sulco não é clínico (esteroides são paliativos), mas sim cirúrgico: explante da LIO ofensora e substituição por uma LIO de três peças no sulco ou fixação escleral/iriana.
O Impacto da Óptica: Esférica vs. Asférica
A evolução da óptica da LIO representa a mudança de visão “funcional” para visão de “alta definição”. O olho humano não é um sistema óptico perfeito; a córnea, em média, induz aberração esférica (AE) positiva. O cristalino jovem natural compensa isso possuindo AE negativa.
- LIOs Esféricas: O design tradicional. Elas próprias adicionam mais AE positiva à AE positiva já existente na córnea , resultando em uma qualidade de imagem total degradada.
- LIOs Asféricas: O padrão moderno. São projetadas para compensar a AE positiva da córnea. O resultado clínico é uma melhora significativa na sensibilidade ao contraste (SC), um benefício mais pronunciado em condições mesópicas (baixa luminosidade), como dirigir à noite.

Embora a acuidade visual de Snellen (BCVA) possa ser semelhante entre os grupos , a qualidade objetiva da visão, medida por sistemas como o OQAS (Optical Quality Analysis System), é superior. Olhos com LIOs asféricas demonstram um Índice de Dispersão Objetiva (OSI) significativamente menor, indicando menos dispersão de luz intraocular.
Seção III: O Arsenal Clínico: Classificação Funcional das LIOs e Seleção de Pacientes
A seleção clínica da LIO gira em torno de um trade-off fundamental: a busca pela independência dos óculos versus a preservação da qualidade da visão.
A. LIOs Monofocais: O Gold Standard e suas Variações
A LIO monofocal padrão fornece um único ponto focal (geralmente para distância), exigindo óculos para visão de perto e, muitas vezes, intermediária.
LIO Monofocal Padrão:
Continua a ser a primeira escolha para muitos cirurgiões porque oferece a qualidade de imagem mais alta (clareza superior) e mínimas aberrações visuais ou fenômenos fóticos (halos/glare). É a escolha mais segura e recomendada para pacientes com comorbidades oculares.
LIOs Monofocais “Enhanced” (Avançadas):
Esta é uma nova subclasse (ex: Tecnis Eyhance, ISOPure 50, Vivinex Impress) que atua como uma “monofocal-plus”. Elas não são multifocais ou EDOF difrativas. Elas usam óptica refrativa de ordem superior para estender sutilmente o foco.
O resultado é uma LIO que fornece excelente visão de distância (comparável à monofocal padrão) mas adiciona visão intermediária funcional (ex: computador, painel do carro). O benefício crucial é que elas alcançam isso sem induzir os fenômenos fóticos (halos/glare) associados às ópticas difrativas. Elas preenchem uma lacuna importante, oferecendo uma atualização de baixo risco sobre a monofocal padrão.
B. Manejo do Astigmatismo: LIOs Tóricas
As LIOs tóricas são lentes monofocais (ou premium) que possuem correção cilíndrica em sua óptica para corrigir o astigmatismo corneal.
- Indicações e Limiares: A indicação é o astigmatismo corneal regular. Os limiares de tratamento variam, mas as diretrizes geralmente recomendam considerá-las para astigmatismo >1.0D , com evidência forte para>1.5D ou > 2.0D.
- Contraindicações:
- Astigmatismo Irregular: (ex: ceratocone avançado, cicatrizes).
- Instabilidade Capsular/Zonulopatia: (ex: PXS, trauma).
C. A Correção da Presbiopia: Multifocais (M-LIO) vs. EDOF
Estas LIOs “premium” visam a independência dos óculos através de ópticas complexas.
- LIOs Multifocais (M-LIO): Usam óptica difrativa para dividir a luz em focos discretos (ex: longe, intermediário, perto). As Trifocais (ex: PanOptix, FineVision) são o padrão moderno, corrigindo o “gap” intermediário deixado pelas bifocais.
- LIOs EDOF (Extended Depth of Focus): Usam óptica difrativa (ex: Tecnis Symfony) ou refrativa (ex: Vivity, PureSee) para alongar um único ponto focal.
Seção IV: Manejo de Complicações Pós-Operatórias e Eventos Adversos Associados à LIO
O conhecimento da LIO é essencial para diagnosticar e manejar complicações pós-operatórias.
A. Opacificação da Cápsula Posterior (OCP)
A OCP é a complicação tardia mais comum , causada pela migração e proliferação de LECs.
Manejo: O tratamento é a Capsulotomia posterior com Nd:YAG laser. É um procedimento ambulatorial, seguro e eficaz que cria uma abertura na cápsula opaca.
B. Disfotopsias: Positiva (PD) e Negativa (ND)
Disfotopsias são fenômenos ópticos indesejados.
- Disfotopsia Positiva (PD): Percepção de artefatos luminosos (halos, glare, arcos de luz). É comum no pós-operatório imediato (até 49%), mas geralmente melhora com a neuroadaptação.
- Disfotopsia Negativa (ND): Percepção de uma sombra escura ou escotoma em forma de meia-lua no campo visual temporal. É menos comum, mas muito mais perturbadora e frequentemente persistente, podendo exigir reintervenção.
C. Malposicionamento da LIO e Síndrome UGH
Esta é a complicação da violação da “Regra Absoluta”. Ocorre quando uma LIO acrílica de peça única é implantada no sulco ciliar. As hápticas espessas e planas atritam a íris posterior , causando a tríade de uveíte, glaucoma e hifema. O manejo é o explante cirúrgico da LIO de peça única e sua substituição por uma LIO de três peças.
D. Síndrome de Contração Capsular e Surpresa Refrativa
A fimosagem da cápsula anterior (contração da capsulorrexe) é uma complicação rara causada pela fibrose de LECs. Fatores de risco incluem PXS. A contração pode levar à descentração ou subluxação da LIO, causando uma surpresa refrativa.

