Desmielinização Nervosa: o que a Esclerose Múltipla faz no Sistema Nervoso Central 

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Imagem: Canva.
Imagem: Canva.

Para os futuros residentes, compreender a Esclerose Múltipla (EM) vai além da memorização de conceitos; exige uma visão integrada de sua fisiopatologia, manifestações clínicas, epidemiologia, estratégias diagnósticas e abordagens terapêuticas.

Dia Mundial da Esclerose Múltipla 

No Dia Mundial da Esclerose Múltipla, voltamos nossos olhares para uma das mais desafiadoras doenças neurológicas: a Esclerose Múltipla (EM). Caracterizada por sua natureza autoimune, desmielinizante e neurodegenerativa, a EM afeta milhões globalmente, exigindo uma compreensão aprofundada de sua complexa fisiopatologia, manifestações clínicas, estratégias diagnósticas e abordagens terapêuticas. 

O Perfil da Doença

O Jornal Brasileiro de Revisão em Saúde mostrou que teve como principal perfil epidemiológico as mulheres jovens (de 35 a 39 anos) no Sudeste (a região mais acometida), como morbimortalidade elevada. 

Diversos fatores de risco têm sido associados ao desenvolvimento da EM. O tabagismo é um deles, relacionado a um maior número de surtos, maior carga lesional e atrofia cerebral. A deficiência de vitamina D também se destaca, com a exposição solar durante a gestação, infância e adolescência inversamente proporcional ao aparecimento da doença, e a suplementação demonstrando reduzir a taxa de surtos. A infecção pelo vírus Epstein-Barr (EBV) e a obesidade na infância completam o quadro dos principais fatores predisponentes.

Como a Esclerose age no Sistema Nervoso Central?

A Esclerose Múltipla é, em sua essência, uma doença autoimune que ataca o sistema nervoso central (SNC). O processo patológico envolve a desmielinização, ou seja, a destruição da bainha de mielina que envolve os axônios, essencial para a condução nervosa eficiente. Este ataque imunológico leva à inflamação, formação de placas (lesões) no cérebro, medula espinhal e nervos ópticos, e, eventualmente, à degeneração axonal. A natureza progressiva da doença reflete a acumulação de danos e a perda neuronal, resultando em disfunção neurológica crônica e incapacidade.

Clínica Sintomatologia e Diagnóstico

O quadro clínico da EM é notavelmente heterogêneo, refletindo a disseminação das lesões no SNC. A doença é caracterizada por surtos, definidos como episódios agudos ou subagudos de disfunção neurológica (motora, sensitiva ou visual) com duração mínima de 24 horas, na ausência de febre, infecção ou distúrbios metabólicos.

As manifestações mais comuns incluem:

Neurite Óptica

 Lesão inflamatória do nervo óptico, geralmente unilateral, cursando com dor retro-ocular, baixa acuidade visual e escotoma central/cecocentral. Um achado clássico é o defeito pupilar aferente relativo (DPAR), ou “pupila de Marcus-Gunn“. A fundoscopia é frequentemente normal, pois a neurite é retrobulbar.

Explore tudo sobre o teste de campo visual para escotoma cecocentral. Entenda como essa condição impacta a visão central, suas causas potenciais, como a neurite óptica, e as implicações para a saúde ocular. Aprenda a interpretar diagramas de seu teste de perimetria para melhor diagnóstico e tratamento. Descubra informações valiosas para pacientes e profissionais de saúde ocular sobre o tratamento de neuropatias ópticas e métodos eficazes para gerenciar escotomas.
Efeito da neurite óptica. | Fonte: Acervo de Ilustrações do Grupo MedCof.

Mielite Aguda

Lesão medular parcial e assimétrica, com sintomas sensitivos mais proeminentes que os motores. Pode haver disfunção esfincteriana (urgência/incontinência urinária/fecal) e o Fenômeno de Lhermitte (sensação de choque ao fletir o pescoço).

A) corte sagital com lesão medular; B) corte axial da lesão, mais lateral. Radiografia em localização de lesão de mielite Aguda. Fonte: Acervo de Aulas do Grupo MedCof.

Síndromes de Tronco Encefálico e Cerebelo

Consideradas mais específicas para EM, resultam de lesões no fascículo longitudinal medial, causando oftalmoplegia internuclear (OIN) uni ou bilateral (Síndrome de WEBINO), diplopia, ataxia, disartria e distúrbios de deglutição.

Diagrama de oftalmoplegia internuclear mostrando lesão no fascículo longitudinal medial entre núcleos abducente e oculomotor, com falha de adução do olho direito e movimento normal do olho esquerdo
A lesão do III par craniano gera além da falha de adução do músculo reto medial do olho, ptose palpebral, reflexo fotomotor ausente e midríase, manifestações da oftalmoplegia intranuclear. | Fonte: Acervo de Ilustrações do Grupo MedCof.

Outros fenômenos paroxísticos incluem o Fenômeno de Uhtoff (piora transitória dos sintomas com o aumento da temperatura corporal), dor neuropática (incluindo neuralgia do trigêmeo) e espasmos tônicos dolorosos.

A evolução da doença 

  • Esclerose Múltipla Remitente-Recorrente (EMRR)

 O mais comum, caracterizado por surtos seguidos de remissões parciais ou completas.

  • Esclerose Múltipla Primariamente Progressiva (EMPP)

 Mais rara e agressiva, com piora neurológica gradual desde o início, sem surtos definidos.

  • Esclerose Múltipla Secundariamente Progressiva (EMSP)

 Inicia-se como EMRR e, após um período, evolui para uma fase de progressão contínua da incapacidade.

O diagnóstico da EM baseia-se nos Critérios de McDonald (2017), que exigem a demonstração de disseminação no tempo e no espaço. A disseminação no espaço é evidenciada por lesões em T2/FLAIR em pelo menos duas das quatro localizações típicas (periventricular, cortical/justacortical, infratentorial, medula espinhal), incluindo os característicos “Dedos de Dawson”. 

Ressonância magnética sagital T2 mostrando Dawson’s fingers em esclerose múltipla, com sobreposição de mão translúcida destacando lesões desmielinizantes
Achado radiológico dos Dedos de Dawson. | Fonte: Acervo de ilustrações do Grupo MedCof.

A disseminação no tempo pode ser confirmada por uma nova lesão em RM de seguimento, lesões com e sem realce ao gadolínio simultaneamente, ou pela detecção de bandas oligoclonais (BOC) tipo 2 no líquor, que indicam produção intratecal de imunoglobulinas e podem substituir o critério radiológico de disseminação no tempo.

Ressonância magnética axial do cérebro com lesão hiperintensa contrastada e área hipointensa não contrastante, indicativa de atividade inflamatória e lesão crônica em doença desmielinizante
Lesão com realce (seta) e lesão sem realce (cabeça de seta) antiga simultâneas. Fonte: Acervo de Aulas do Grupo MedCof.

Estratégias para o Manejo da Doença

O manejo da EM abrange o tratamento dos surtos agudos e a terapia modificadora da doença (DMDs) para prevenir novos surtos e a progressão da incapacidade.

O tratamento do surto pode ser feito a partir da pulsoterapia com metilprednisolona (1g/dia por 3 a 5 dias), que é a pedra angular para reduzir a inflamação e acelerar a recuperação. Em casos refratários, a plasmaférese pode ser considerada.

Além disso, o tratamento de manutenção (DMDs) segue as diretrizes do Ministério da Saúde (MS) e da Sociedade Brasileira de Esclerose Múltipla (SBEM), que orientam o uso de DMDs, que são classificados em linhas de tratamento:

  • Primeira Linha: Inclui betainterferonas, acetato de glatirâmer, teriflunomida e fumarato de dimetila. São medicamentos mais antigos, com perfil de segurança bem estabelecido, mas com eficácia moderada.
  • Segunda Linha: O fingolimode (oral) representa uma opção mais recente e eficaz.
  • Terceira Linha: Natalizumabe e alentuzumabe são drogas de alta eficácia, reservadas para casos mais agressivos ou refratários. É crucial monitorar o risco de Leucoencefalopatia Multifocal Progressiva (LEMP) com o natalizumabe, especialmente em pacientes JC vírus positivos e com uso prévio de imunossupressores.

É fundamental lembrar que enquanto o MS preconiza uma abordagem escalonada (iniciar com primeira linha e progredir conforme a necessidade), a SBEM advoga por uma terapia mais agressiva desde o início para pacientes com pior prognóstico (homens, jovens com múltiplas lesões ao diagnóstico). Agentes como ocrelizumabe, cladribina e ofatumumabe também estão disponíveis, principalmente na rede particular, ampliando o arsenal terapêutico.

Condições Associadas 

Além dos sintomas agudos e da progressão da doença, pacientes com EM frequentemente enfrentam condições associadas que impactam significativamente sua qualidade de vida. A dor neuropática e os espasmos tônicos dolorosos, mencionados como fenômenos paroxísticos, podem se tornar crônicos e exigir manejo específico. Fadiga, disfunção cognitiva, depressão e ansiedade são outras comorbidades comuns que indicam uma necessidade de cuidado médico humanizado e uma abordagem multidisciplinar da condição neurológica.  No Dia Mundial da Esclerose Múltipla, reafirmamos a importância da pesquisa contínua e da atenção integral ao paciente, visando sempre a melhoria da qualidade de vida e a desaceleração da progressão da incapacidade.

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