Morte encefálica: diagnóstico, implicações legais e conduta médica

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Médicos em miniatura analisando um cérebro.
Médicos em miniatura analisando um cérebro.
Reprodução: Canva.

A morte encefálica, ou morte cerebral, consiste na perda irreversível das funções do cérebro e do tronco encefálico. A causa ocorre pelo aumento da pressão intracraniana devido ao edema ou pelo cessar da circulação sanguínea. Para diagnosticar é preciso seguir um protocolo criado especialmente para esse momento. 

Quais são as características da morte encefálica? 

As principais características da morte encefálica são:

  • Irreversibilidade — a perda da função encefálica é definitiva, sem possibilidade de recuperação por qualquer tratamento médico disponível.
  • Perda de todas as funções cerebrais e do tronco encefálico — inclui ausência de consciência, atividade elétrica cortical e reflexos do tronco (como reflexo pupilar, corneano e oculocefálico).
  • Ausência de respiração espontânea — confirmada pelo teste de apneia, que demonstra a incapacidade de iniciar movimentos respiratórios mesmo diante do aumento do CO₂ no sangue.
  • Origem conhecida e causa estabelecida — é necessário identificar uma lesão estrutural ou condição clínica capaz de justificar a falência encefálica (ex.: trauma cranioencefálico grave, AVC extenso, anóxia).
  • Exclusão de causas reversíveis — como hipotermia, intoxicação por drogas depressoras do sistema nervoso central, distúrbios metabólicos ou hipotensão grave.
  • Comprovação por exame clínico neurológico — realizado por médicos habilitados, em mais de uma avaliação e com intervalo mínimo determinado por lei/protocolo.
  • Possibilidade de manutenção artificial — apesar da morte encefálica, é possível manter o funcionamento de órgãos temporariamente com ventilação mecânica e suporte hemodinâmico.
  • Critério legal de morte — no Brasil e em vários países, o diagnóstico de morte encefálica é equivalente à morte para fins jurídicos, éticos e de transplante de órgãos.

De acordo com a resolução do CFM Nº 2.173/2017, a morte encefálica é definida como a cessação completa e irreversível de todas as funções cerebrais, incluindo a atividade do tronco cerebral. A única atividade espontânea é a cardiovascular. Isso significa que o cérebro não é mais capaz de controlar as funções vitais do corpo, como a respiração e a circulação, portanto há a deterioração clínica e neurológica do indivíduo. Os únicos reflexos presentes são aqueles mediados pela medula espinal.

Diagnóstico da morte encefálica

O diagnóstico é estabelecido com base em critérios clínicos obrigatórios e exames confirmatórios, conforme protocolo oficial:

  • Coma não perceptivo — ausência total de reatividade supraespinhal.
  • Testes clínicos de tronco encefálico — ausência dos reflexos fotomotor, corneopalpebral, oculocefálico, vestibulocalórico e de tosse.
  • Teste de apneia — demonstra ausência de respiração espontânea diante de hipercapnia controlada.

Os exames confirmatórios realizados para comprovar ausência de atividade cerebral são:

  • Angiografia cerebral — mostra ausência de fluxo sanguíneo cerebral.
  • Eletroencefalograma (EEG) — registra ausência de atividade elétrica cortical.
  • Outros exames de fluxo cerebral — conforme disponibilidade e protocolos locais.

E os requisitos de avaliação envolvem:

  • Testes clínicos e confirmatórios realizados por dois médicos capacitados, sendo um especialista (intensivista, neurologista, neurocirurgião ou emergencista).
  • Nenhum dos avaliadores pode integrar a equipe de transplantes.

Testes clínicos para avaliação de reflexos do tronco encefálico

No diagnóstico de morte encefálica, a avaliação neurológica inclui a verificação da ausência de reflexos mediados pelo tronco encefálico. Esses testes permitem confirmar a falência funcional dessa região.  Os principais são:

  • Reflexo fotomotor (pupilar à luz) — avalia a contração da pupila em resposta à luz direta. Ausência de resposta indica falha no mesencéfalo.
  • Reflexo corneopalpebral — estimulação da córnea com algodão ou gaze deve provocar fechamento das pálpebras. Ausência indica lesão pontual.
  • Reflexo oculocefálico (“olhos de boneca”) — movimento rápido da cabeça para os lados ou verticalmente deve gerar movimento ocular compensatório. Ausência indica comprometimento do tronco encefálico.
  • Reflexo vestíbulo-calórico — irrigação do conduto auditivo externo com água fria (ou morna) deve gerar desvio ocular para o lado estimulado. Ausência sugere lesão no tronco encefálico.
  • Reflexo de tosse — estimulação da traqueia ou brônquios (geralmente por aspiração endotraqueal) deve provocar tosse ou movimento respiratório reflexo. Ausência indica falha bulbar.

Teste de apneia: procedimentos e interpretação

O teste de apneia é etapa essencial no diagnóstico de morte encefálica, avaliando a ausência de respiração espontânea diante de hipercapnia controlada. Antes de realizá-lo, o paciente deve estar em condições adequadas:

  • Temperatura ≥ 35 °C;
  • Pressão arterial sistólica ≥ 100 mmHg (ou PAM ≥ 65 mmHg);
  • Saturação ≥ 95%;
  • Equilíbrio metabólico. 

É necessário ventilar com FiO₂ 100% por 10 minutos para garantir PaO₂ > 200 mmHg e prevenir hipóxia durante o procedimento.

O teste consiste em desconectar o ventilador, mantendo oxigenação por cateter intratraqueal ou CPAP, e observar por até 8–10 minutos a presença de movimentos respiratórios. 

As coletas de gasometria arterial são feitas no início e no final do teste. Durante o procedimento, é fundamental monitorar o paciente continuamente, interrompendo se houver instabilidade grave ou queda acentuada da saturação.

O resultado é positivo para morte encefálica quando não há movimentos respiratórios e a PaCO₂ final é ≥ 55 mmHg ou aumentou ≥ 20 mmHg em relação ao basal. É negativo se houver qualquer esforço ventilatório antes de atingir os critérios. Considera-se inconclusivo quando o teste é interrompido por instabilidade ou hipoxemia sem atingir parâmetros, devendo ser repetido ou substituído por exame confirmatório.

Em pacientes especiais, ajustes são necessários: na DPOC ou hipercapnia crônica, o alvo é PaCO₂ > 60 mmHg ou aumento ≥ 20 mmHg sobre o basal; em crianças, seguem-se protocolos pediátricos adaptados; em risco de hipoxemia, usa-se CPAP ou O₂ contínuo; e em instabilidade grave, indica-se diretamente exame de fluxo cerebral, como angiografia ou doppler transcraniano.

Exames confirmatórios complementares

Os exames confirmatórios complementares são utilizados para comprovar a ausência de atividade encefálica quando o exame clínico ou o teste de apneia não podem ser realizados ou concluídos, ou ainda em situações específicas previstas em protocolo. Embora o diagnóstico de morte encefálica seja essencialmente clínico, esses métodos oferecem evidência objetiva adicional, aumentando a segurança diagnóstica.

O eletroencefalograma (EEG) registra a atividade elétrica cortical. Em morte encefálica, o EEG mostra ausência completa de atividade bioelétrica, denominada “silêncio elétrico cerebral”. É indicado quando há impossibilidade de completar o exame clínico, presença de fatores que confundem a avaliação neurológica ou necessidade de maior segurança em contextos especiais, como em crianças pequenas.

A angiografia cerebral avalia o fluxo sanguíneo nos vasos intracranianos, demonstrando interrupção completa da perfusão cerebral. É considerada um dos métodos mais confiáveis para confirmação da morte encefálica, sendo especialmente útil quando há instabilidade clínica que inviabiliza o teste de apneia ou quando o EEG apresenta limitações interpretativas.

Outros exames de fluxo, como doppler transcraniano, cintilografia cerebral ou tomografia por perfusão, podem ser utilizados de acordo com a disponibilidade e regulamentação local. A escolha do método depende das condições do paciente, recursos do serviço e exigências legais, garantindo precisão e confiabilidade no diagnóstico.

Implicações legais da morte encefálica

A determinação de morte encefálica é regulamentada por leis específicas, como a Lei nº 9.434/1997, Lei nº 11.521/2007, Decreto nº 9.175/2017 e Resolução do CFM nº 1.826/2007. Essas normas garantem a precisão e a ética no diagnóstico, essencial para a doação de órgãos.

  • Trecho transcrito da Resolução no 2.173/2017, do Conselho Federal de Medicina:

“Art. 1º – Os procedimentos para determinação de morte encefálica (ME) devem ser iniciados em todos os pacientes que apresentem coma não perceptivo, ausência de reatividade supraespinhal e apneia persistente, e que atendam a todos os seguintes pré-requisitos:

  • Presença de lesão encefálica de causa conhecida, irreversível e capaz de causar morte encefálica;
  • Ausência de fatores tratáveis que possam confundir o diagnóstico de morte encefálica;
  • Tratamento e observação em hospital pelo período mínimo de seis horas. Quando a causa primária do quadro for encefalopatia hipóxico-isquêmica, esse período de tratamento e observação deverá ser de, no mínimo, 24 horas;
  • Temperatura corporal (esofagiana, vesical ou retal) superior a 35°C, saturação arterial de oxigênio acima de 94% e pressão arterial sistólica maior ou igual a 100 mmHg ou pressão arterial média maior ou igual a 65mmHg para adultos, ou conforme a tabela de referência.”

Diferenças entre morte encefálica e coma

A morte encefálica e o coma são condições distintas, embora ambas envolvam comprometimento grave da função cerebral. No coma, há redução profunda do nível de consciência, mas as funções vitais básicas e parte da atividade cerebral permanecem preservadas, possibilitando recuperação parcial ou total. Já a morte encefálica é a perda completa e irreversível de todas as funções do encéfalo, incluindo o tronco encefálico, sendo considerada legalmente como morte.

O diagnóstico de morte encefálica segue critérios clínicos e legais rigorosos, confirmando a ausência definitiva de atividade cerebral. No coma, por outro lado, ainda existe fluxo sanguíneo cerebral e atividade elétrica, e o paciente mantém reflexos do tronco encefálico e respiração espontânea, embora possa necessitar de suporte ventilatório em alguns casos.

AspectoMorte EncefálicaComa
ConsciênciaAusente e irreversívelAusente, mas potencialmente reversível
Funções do tronco encefálicoAbolidas (sem reflexos)Preservadas, total ou parcialmente
Respiração espontâneaAusente (necessidade de ventilação mecânica)Presente, embora possa ser reduzida
Atividade elétrica cerebral (EEG)Ausente (silêncio elétrico)Presente, mesmo que diminuída
Fluxo sanguíneo cerebralAusentePresente
PrognósticoIrreversível, equivale a morte legalVariável: desde recuperação até evolução para morte encefálica
Status legalConsiderada morte para fins jurídicos e de transplanteNão é considerada morte

Conduta médica após o diagnóstico de morte encefálica

Após o diagnóstico de morte encefálica, a conduta médica deve focar na manutenção adequada do suporte ventilatório e hemodinâmico para preservar a viabilidade dos órgãos, especialmente se houver potencial para doação. Isso inclui controle rigoroso da pressão arterial, equilíbrio hidroeletrolítico, suporte ventilatório mecânico e prevenção de complicações como infecções e distúrbios metabólicos.

A comunicação com os familiares é essencial, devendo ser feita de forma clara, empática e transparente, explicando o significado do diagnóstico, a irreversibilidade da condição e as opções disponíveis, incluindo a possibilidade da doação de órgãos. O suporte psicológico pode ser necessário para ajudar no processo de aceitação e tomada de decisão.

Do ponto de vista ético, respeita-se a dignidade do paciente, garantindo cuidados paliativos adequados até o momento da desconexão dos suportes. O protocolo para desligamento deve seguir as normas legais e institucionais, assegurando que a decisão seja tomada de maneira formal, envolvendo a equipe multidisciplinar e os familiares.

Caso não haja doação, os suportes podem ser suspensos após a confirmação legal da morte encefálica, respeitando os aspectos legais e culturais. A equipe deve estar preparada para acompanhar o processo, garantindo conforto e respeito ao paciente e à família.

Principais causas de morte encefálica

  • Traumatismo cranioencefálico (TCE) grave:provoca lesão direta ao tecido cerebral e aumento da pressão intracraniana (PIC), levando a compressão e falência do tronco encefálico por herniação cerebral e isquemia.
  • Acidente vascular cerebral (AVC) extenso: principalmente o AVC hemorrágico ou isquêmico de grande porte, causa edema cerebral e elevação da PIC, resultando em interrupção do fluxo sanguíneo e morte neuronal generalizada.
  • Encefalopatias hipóxico-isquêmicas: ocorrem após parada cardiorrespiratória prolongada ou anóxia cerebral grave, causando lesão difusa e irreversível das células nervosas por falta de oxigênio.
  • Infecções graves do sistema nervoso central: meningite ou encefalite fulminante podem causar edema cerebral e danos difusos com falência neurológica irreversível.
  • Hematomas intracranianos expansivos: hematomas subdural, epidural ou intracerebral que provocam compressão progressiva do cérebro e transtornos do fluxo sanguíneo cerebral.
  • Tumores cerebrais volumosos ou hemorragias associadas: podem causar aumento da pressão intracraniana e danos diretos ao tronco encefálico.

Em todas essas causas, a fisiopatologia central envolve o aumento da pressão intracraniana, redução do fluxo sanguíneo cerebral, isquemia progressiva e lesão neuronal irreversível, culminando na falência completa do encéfalo e do tronco encefálico.

É possível um paciente com morte encefálica voltar a viver?

Um paciente com morte encefálica não pode voltar a viver. A morte encefálica representa a cessação completa e irreversível de todas as funções do encéfalo, incluindo o tronco encefálico, que é responsável pelas funções vitais básicas, como respiração e controle cardiovascular.

Diferentemente do coma ou do estado vegetativo, nos quais há preservação parcial das funções cerebrais e possibilidade de recuperação, a morte encefálica implica a ausência total de atividade elétrica cerebral, reflexos do tronco encefálico e respiração espontânea, confirmada por protocolos rigorosos e exames complementares.

A irreversibilidade decorre da destruição celular extensa, da interrupção do fluxo sanguíneo cerebral e da impossibilidade de restauração da integridade anatômica e funcional do cérebro. Legalmente, o diagnóstico de morte encefálica é equiparado à morte clínica, autorizando a suspensão dos cuidados de suporte vital e a doação de órgãos.

Portanto, não há possibilidade científica, médica ou legal de reversão da morte encefálica, reforçando seu caráter definitivo como critério de morte do paciente.

Qual a diferença entre morte cerebral e morte encefálica?

Na prática médica e legal no Brasil, os termos morte cerebral e morte encefálica são considerados sinônimos, ambos definindo a cessação completa e irreversível de todas as funções do encéfalo, incluindo o tronco encefálico. Esse diagnóstico é o critério legal para declarar a morte do paciente.

Porém, entre leigos, esses termos podem gerar confusão, já que “morte cerebral” pode ser interpretada como morte parcial do cérebro, enquanto “morte encefálica” reforça a ideia de falência total do encéfalo. Por isso, o termo “morte encefálica” é o preferido nas diretrizes médicas brasileiras, por ser mais técnico e abrangente.

As diretrizes oficiais estabelecem que o diagnóstico de morte encefálica deve ser realizado por critérios clínicos rigorosos e, quando necessário, complementado por exames confirmatórios. Dessa forma, evita-se ambiguidades e garante-se a clareza na comunicação com equipes médicas e familiares.

Assim, para fins técnicos e legais, usar “morte encefálica” é o mais correto, evitando interpretações equivocadas e assegurando o entendimento uniforme do conceito de morte nos ambientes clínicos e jurídicos.

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