Principais achados da Reumatologia na prática pediátrica

0
12

A reumatologia pediátrica abrange um grupo de doenças inflamatórias crônicas que podem afetar articulações, vasos sanguíneos e múltiplos órgãos. Compreender seus mecanismos e apresentações clínicas é vital para o diagnóstico precoce e manejo adequado, prevenindo complicações graves.

Neste post, focaremos em três das condições mais relevantes: Doença de Kawasaki, Vasculite por IgA (Púrpura de Henoch-Schölein) e Febre Reumática.

Doença de Kawasaki (DK)

Mecanismo e Conceito

A Doença de Kawasaki é uma doença febril aguda caracterizada por uma vasculite de artérias de médio calibre. Sua principal e mais temida característica é a preferência pelas artérias coronárias, o que confere um risco significativo de desenvolvimento de aneurismas.

A etiologia exata ainda é incerta, mas acredita-se que envolva uma provável origem infecciosa associada a uma predisposição genética.Acomete principalmente crianças na primeira infância, geralmente menores de 5 anos, sendo mais comum no sexo masculino e em descendentes de asiáticos.

Sinais e Sintomas (Fases Clínicas)

O diagnóstico da DK é clínico e baseia-se na presença de febre associada a outros critérios, divididos em fases:

Fase Aguda (Duração: 1-2 semanas)

É marcada pela febre alta e pelo surgimento dos sinais clínicos.

  • Critério Obrigatório: Febre por 5 dias ou mais.
  • Critérios Adicionais (Necessário 4 de 5):
    • Alterações em extremidades: Eritema (vermelhidão) e edema (inchaço) de mãos e pés.
Fonte: Saguil A, Fargo M, Grogan S. Diagnosis and management of kawasaki disease. Am Fam Physician. 2015 Mar 15;91(6):365-71. PMID: 25822554. 
  • Alterações em lábios e cavidade oral: Eritema e fissura labiais, “língua em framboesa” ou morango, e hiperemia difusa da orofaringe.
Fonte: Saguil A, Fargo M, Grogan S. Diagnosis and management of kawasaki disease. Am Fam Physician. 2015 Mar 15;91(6):365-71. PMID: 25822554.
  • Exantema polimorfo: Erupção cutânea que pode ser maculopapular ou escarlatiniforme, com predomínio em tronco.
Fonte: Saguil A, Fargo M, Grogan S. Diagnosis and management of kawasaki disease. Am Fam Physician. 2015 Mar 15;91(6):365-71. PMID: 25822554.
  • Hiperemia conjuntival: Bilateral, não purulenta (sem exsudato).
Fonte: Saguil A, Fargo M, Grogan S. Diagnosis and management of kawasaki disease. Am Fam Physician. 2015 Mar 15;91(6):365-71. PMID: 25822554. 
  • Linfadenopatia cervical: Geralmente unilateral, com linfonodo maior ou igual a 1,5 cm.

Fase Subaguda (Duração: 3 semanas)

Nesta fase, a febre e o exantema geralmente regridem, mas surgem outros achados característicos:

  • Descamação de extremidades: Tipicamente periungueal (ao redor das unhas) e perineal.
  • Trombocitose: Elevação expressiva da contagem de plaquetas.
  • Aneurisma de Artéria Coronária (AAC): É o período de maior risco para o surgimento desta complicação, que pode levar à morte súbita (ocorre em até 25% dos não tratados).

Fase de Convalescença (6-8 semanas após o início)

Os sinais clínicos desaparecem, mas a VHS (Velocidade de Hemossedimentação) pode permanecer elevada. A fase termina com a normalização dos exames inflamatórios.

Diagnóstico e Complicações

O Ecocardiograma é mandatório para avaliar o risco de aneurisma de coronárias. Deve ser realizado:

  • Ao diagnóstico;
  • Com 2-3 semanas do início da doença;
  • Com 6-8 semanas do início da doença.
Tratamento Específico
  • Fase Aguda: O objetivo é prevenir a complicação coronariana. O tratamento deve ser iniciado idealmente nos primeiros 10 dias da doença.
    • Imunoglobulina Venosa (IGEV): Dose única de 2 g/kg.
    • Aspirina (AAS): Em doses anti-inflamatórias (altas, 80-100 mg/kg/dia, ou moderadas, 30-50 mg/kg/dia).
  • Fase de Convalescença:
    • Aspirina (AAS): A dose é reduzida para antiagregação (antitrombótica) de 3-5 mg/kg/dia.
    • Essa transição ocorre após o paciente ficar afebril por 48 horas ou a partir do 14º dia de doença.
    • O AAS é mantido por 6 a 8 semanas e pode ser interrompido se o ecocardiograma de controle for normal.

Vasculite por IgA (Púrpura de Henoch-Schölein)

Mecanismo e Conceito

Também conhecida como Púrpura de Henoch-Schölein (PHS), é a vasculite primária mais comum na infância. Trata-se de uma vasculite de pequenos vasos mediada por complexos imunes, caracterizada por uma vasculite leucocitoclástica com deposição predominante de IgA.

Acomete principalmente a pele, articulações, trato gastrointestinal (TGI) e os glomérulos renais. A maioria dos casos (90%) ocorre em crianças de 3 a 10 anos e frequentemente sucede uma infecção de vias aéreas superiores (IVAS), sendo o S. pyogenes um gatilho comum.

Sinais e Sintomas (Critérios Diagnósticos)

O diagnóstico é clínico, baseado nos critérios do EULAR/PRINTO/PRES:

  • Critério Obrigatório:Púrpura palpável (na ausência de trombocitopenia ou coagulopatia).
    • Localização: Predomina em regiões de ação da gravidade, como membros inferiores e região glútea.
Fonte: HetlandLE, Susrud KS, Lindahl KH, Bygum A. Henoch-Schönlein Purpura: A Literature Review. Acta Derm Venereol. 2017 Nov 15;97(10):1160-1166. doi: 10.2340/00015555-2733. PMID: 28654132.. 
  • Associado a pelo menos 1 dos seguintes:
    • Dor abdominal: Geralmente difusa e em cólica. Ocorre em até 70-80% dos casos. Pode mimetizar um abdome agudo cirúrgico e, em casos raros (< 5%), cursar com intussuscepção ou perfuração.
    • Artrite ou Artralgia: Acomete 70-90% dos pacientes. É tipicamente oligoarticular (poucas articulações), focada em membros inferiores (tornozelos e joelhos). É autolimitada e não deixa sequelas.
    • Envolvimento Renal (Nefrite): Ocorre em 10-50% dos casos e é o principal determinante de pior prognóstico. As manifestações incluem hematúria microscópica, proteinúria, hipertensão ou até nefrite franca e síndrome nefrótica.
    • Histopatologia: Biópsia de tecido (pele ou rim) demonstrando deposição predominante de IgA.

Tratamento Específico

  • Tratamento de Suporte: A maioria dos casos não apresenta envolvimento grave de TGI ou rins. O manejo foca em hidratação, nutrição e analgesia.
  • Corticoterapia (Prednisona/Prednisolona 1 mg/kg/dia):
    • Indicações: Reservada para casos de maior gravidade, como dor abdominal intensa, hemorragia digestiva, intussuscepção, vasculite cerebral ou hemorragia pulmonar.
    • Importante: A corticoterapia trata os sintomas gastrointestinais e articulares, mas NÃO previne o desenvolvimento de nefrite.
    • A retirada do corticoide deve ser paulatina para evitar o rebote dos sintomas.

Febre Reumática

Mecanismo e Conceito

A Febre Reumática (FR) é uma complicação não supurativa que ocorre após uma faringotonsilite causada pelo Streptococcus pyogenes (Estreptococo beta-hemolítico do grupo A).

O mecanismo envolve uma resposta autoimune desencadeada por cepas reumatogênicas específicas em um indivíduo com susceptibilidade genética. A teoria mais aceita é a da imunogenicidade (mimetismo molecular), onde antígenos do S. pyogenes se assemelham a proteínas humanas, principalmente cardíacas, levando o sistema imune a atacar os próprios tecidos.

É a causa mais comum de cardiopatia adquirida no Brasil, afetando tipicamente crianças em idade escolar e adolescentes.

Sinais e Sintomas (Critérios de Jones)

O diagnóstico é feito utilizando os Critérios de Jones, que exigem a comprovação de infecção estreptocócica prévia (cultura, teste rápido ou anticorpos elevados) associada a:2 critérios maiores OU 1 maior + 2 menores.

Critérios Maiores:

  • Cardite (clínica ou subclínica): É a manifestação mais grave, definindo a morbimortalidade. Acomete 50-60% dos pacientes. A principal manifestação é a valvulite, sendo a regurgitação mitral a mais comum, seguida pela aórtica.
  • Artrite: É a forma mais frequente (75%) e precoce. Classicamente é uma poliartrite migratória que acomete grandes articulações (em populações de baixo risco, como no Brasil, considera-se poliartrite). Apresenta resposta dramática aos salicilatos.
  • Coreia de Sydenham: Acomete 10-15% dos pacientes e tem um longo período de latência (até 6 meses). Caracteriza-se por movimentos involuntários, labilidade emocional e piora do desempenho escolar. Os sintomas melhoram com o sono. Pode ser o único critério diagnóstico presente.
  • Eritema Marginado: Manifestação rara. São lesões maculares, eritematosas, serpiginosas (com bordas), de centro pálido e não pruriginosas. Poupa a face.
Fonte: Wang CR, Lee NY, Tsai HW, Yang CC, Lee CH. Acute rheumatic fever in adult patients. Medicine (Baltimore). 2022 Jul 1;101(26):e29833. doi: 10.1097/MD.0000000000029833. PMID: 35777053; PMCID: PMC9239616 
  • Nódulos subcutâneos: Surgem tardiamente em superfícies extensoras (ex: cotovelos). Estão fortemente correlacionados com a gravidade da cardite.

Critérios Menores

  • Artralgia (em populações de baixo risco, poliartralgia).
  • Febre (em baixo risco: > 38,5°C).
  • Elevação de reagentes de fase aguda (VHS e PCR).
  • Prolongamento do intervalo PR no ECG.

Tratamento Específico

O tratamento da FR é dividido em fases:

  1. Erradicação do Estreptococo:
    • Obrigatório para todos os pacientes com FR, independentemente da apresentação.
    • O objetivo é eliminar a bactéria da orofaringe. (Droga de escolha: Penicilina G Benzatina).
  2. Terapia Anti-inflamatória:
    • Artrite: Responde bem a AINEs ou salicilatos.
    • Cardite: Requer o uso de glicocorticoides.
  3. Tratamento da Coreia:
    • Utiliza-se haloperidol ou ácido valproico. Fenobarbital e corticoides também são opções.
  4. Profilaxia Secundária:
    • Fundamental para evitar novos surtos e a piora de lesões valvares prévias.
    • Esquema: Penicilina G benzatina (dose varia por peso) aplicada a cada 21 dias (3 semanas).
    • Duração: Varia conforme a gravidade da cardite:
      • FR sem cardite: 5 anos após o último episódio ou até os 21 anos (o que durar mais).
      • FR com cardite (lesão leve residual): 10 anos após o último episódio ou até os 25 anos (o que durar mais).
      • FR com cardite (lesão moderada a severa): Até os 40 anos ou por toda a vida.
      • FR com cirurgia valvar: Por toda a vida.
Leia também: Identificando as diferentes doenças exantemáticas

Conquiste a aprovação e acompanhe mais notícias!

Gostou do conteúdo? Continue acompanhando nosso blog para ficar por dentro das principais notícias sobre residência médica, editais e oportunidades que podem transformar sua carreira!