
A reumatologia pediátrica abrange um grupo de doenças inflamatórias crônicas que podem afetar articulações, vasos sanguíneos e múltiplos órgãos. Compreender seus mecanismos e apresentações clínicas é vital para o diagnóstico precoce e manejo adequado, prevenindo complicações graves.
Neste post, focaremos em três das condições mais relevantes: Doença de Kawasaki, Vasculite por IgA (Púrpura de Henoch-Schölein) e Febre Reumática.
Doença de Kawasaki (DK)
Mecanismo e Conceito
A Doença de Kawasaki é uma doença febril aguda caracterizada por uma vasculite de artérias de médio calibre. Sua principal e mais temida característica é a preferência pelas artérias coronárias, o que confere um risco significativo de desenvolvimento de aneurismas.
A etiologia exata ainda é incerta, mas acredita-se que envolva uma provável origem infecciosa associada a uma predisposição genética.Acomete principalmente crianças na primeira infância, geralmente menores de 5 anos, sendo mais comum no sexo masculino e em descendentes de asiáticos.
Sinais e Sintomas (Fases Clínicas)
O diagnóstico da DK é clínico e baseia-se na presença de febre associada a outros critérios, divididos em fases:
Fase Aguda (Duração: 1-2 semanas)
É marcada pela febre alta e pelo surgimento dos sinais clínicos.
- Critério Obrigatório: Febre por 5 dias ou mais.
 - Critérios Adicionais (Necessário 4 de 5):
- Alterações em extremidades: Eritema (vermelhidão) e edema (inchaço) de mãos e pés.
 
 

- Alterações em lábios e cavidade oral: Eritema e fissura labiais, “língua em framboesa” ou morango, e hiperemia difusa da orofaringe.
 

- Exantema polimorfo: Erupção cutânea que pode ser maculopapular ou escarlatiniforme, com predomínio em tronco.
 

- Hiperemia conjuntival: Bilateral, não purulenta (sem exsudato).
 

- Linfadenopatia cervical: Geralmente unilateral, com linfonodo maior ou igual a 1,5 cm.
 
Fase Subaguda (Duração: 3 semanas)
Nesta fase, a febre e o exantema geralmente regridem, mas surgem outros achados característicos:
- Descamação de extremidades: Tipicamente periungueal (ao redor das unhas) e perineal.
 - Trombocitose: Elevação expressiva da contagem de plaquetas.
 - Aneurisma de Artéria Coronária (AAC): É o período de maior risco para o surgimento desta complicação, que pode levar à morte súbita (ocorre em até 25% dos não tratados).
 
Fase de Convalescença (6-8 semanas após o início)
Os sinais clínicos desaparecem, mas a VHS (Velocidade de Hemossedimentação) pode permanecer elevada. A fase termina com a normalização dos exames inflamatórios.
Diagnóstico e Complicações
O Ecocardiograma é mandatório para avaliar o risco de aneurisma de coronárias. Deve ser realizado:
- Ao diagnóstico;
 - Com 2-3 semanas do início da doença;
 - Com 6-8 semanas do início da doença.
 
Tratamento Específico
- Fase Aguda: O objetivo é prevenir a complicação coronariana. O tratamento deve ser iniciado idealmente nos primeiros 10 dias da doença.
- Imunoglobulina Venosa (IGEV): Dose única de 2 g/kg.
 - Aspirina (AAS): Em doses anti-inflamatórias (altas, 80-100 mg/kg/dia, ou moderadas, 30-50 mg/kg/dia).
 
 - Fase de Convalescença:
- Aspirina (AAS): A dose é reduzida para antiagregação (antitrombótica) de 3-5 mg/kg/dia.
 - Essa transição ocorre após o paciente ficar afebril por 48 horas ou a partir do 14º dia de doença.
 - O AAS é mantido por 6 a 8 semanas e pode ser interrompido se o ecocardiograma de controle for normal.
 
 
Vasculite por IgA (Púrpura de Henoch-Schölein)
Mecanismo e Conceito
Também conhecida como Púrpura de Henoch-Schölein (PHS), é a vasculite primária mais comum na infância. Trata-se de uma vasculite de pequenos vasos mediada por complexos imunes, caracterizada por uma vasculite leucocitoclástica com deposição predominante de IgA.
Acomete principalmente a pele, articulações, trato gastrointestinal (TGI) e os glomérulos renais. A maioria dos casos (90%) ocorre em crianças de 3 a 10 anos e frequentemente sucede uma infecção de vias aéreas superiores (IVAS), sendo o S. pyogenes um gatilho comum.
Sinais e Sintomas (Critérios Diagnósticos)
O diagnóstico é clínico, baseado nos critérios do EULAR/PRINTO/PRES:
- Critério Obrigatório:Púrpura palpável (na ausência de trombocitopenia ou coagulopatia).
- Localização: Predomina em regiões de ação da gravidade, como membros inferiores e região glútea.
 
 

- Associado a pelo menos 1 dos seguintes:
- Dor abdominal: Geralmente difusa e em cólica. Ocorre em até 70-80% dos casos. Pode mimetizar um abdome agudo cirúrgico e, em casos raros (< 5%), cursar com intussuscepção ou perfuração.
 - Artrite ou Artralgia: Acomete 70-90% dos pacientes. É tipicamente oligoarticular (poucas articulações), focada em membros inferiores (tornozelos e joelhos). É autolimitada e não deixa sequelas.
 - Envolvimento Renal (Nefrite): Ocorre em 10-50% dos casos e é o principal determinante de pior prognóstico. As manifestações incluem hematúria microscópica, proteinúria, hipertensão ou até nefrite franca e síndrome nefrótica.
 - Histopatologia: Biópsia de tecido (pele ou rim) demonstrando deposição predominante de IgA.
 
 
Tratamento Específico
- Tratamento de Suporte: A maioria dos casos não apresenta envolvimento grave de TGI ou rins. O manejo foca em hidratação, nutrição e analgesia.
 - Corticoterapia (Prednisona/Prednisolona 1 mg/kg/dia):
- Indicações: Reservada para casos de maior gravidade, como dor abdominal intensa, hemorragia digestiva, intussuscepção, vasculite cerebral ou hemorragia pulmonar.
 - Importante: A corticoterapia trata os sintomas gastrointestinais e articulares, mas NÃO previne o desenvolvimento de nefrite.
 - A retirada do corticoide deve ser paulatina para evitar o rebote dos sintomas.
 
 
Febre Reumática
Mecanismo e Conceito
A Febre Reumática (FR) é uma complicação não supurativa que ocorre após uma faringotonsilite causada pelo Streptococcus pyogenes (Estreptococo beta-hemolítico do grupo A).
O mecanismo envolve uma resposta autoimune desencadeada por cepas reumatogênicas específicas em um indivíduo com susceptibilidade genética. A teoria mais aceita é a da imunogenicidade (mimetismo molecular), onde antígenos do S. pyogenes se assemelham a proteínas humanas, principalmente cardíacas, levando o sistema imune a atacar os próprios tecidos.
É a causa mais comum de cardiopatia adquirida no Brasil, afetando tipicamente crianças em idade escolar e adolescentes.
Sinais e Sintomas (Critérios de Jones)
O diagnóstico é feito utilizando os Critérios de Jones, que exigem a comprovação de infecção estreptocócica prévia (cultura, teste rápido ou anticorpos elevados) associada a:2 critérios maiores OU 1 maior + 2 menores.
Critérios Maiores:
- Cardite (clínica ou subclínica): É a manifestação mais grave, definindo a morbimortalidade. Acomete 50-60% dos pacientes. A principal manifestação é a valvulite, sendo a regurgitação mitral a mais comum, seguida pela aórtica.
 - Artrite: É a forma mais frequente (75%) e precoce. Classicamente é uma poliartrite migratória que acomete grandes articulações (em populações de baixo risco, como no Brasil, considera-se poliartrite). Apresenta resposta dramática aos salicilatos.
 - Coreia de Sydenham: Acomete 10-15% dos pacientes e tem um longo período de latência (até 6 meses). Caracteriza-se por movimentos involuntários, labilidade emocional e piora do desempenho escolar. Os sintomas melhoram com o sono. Pode ser o único critério diagnóstico presente.
 - Eritema Marginado: Manifestação rara. São lesões maculares, eritematosas, serpiginosas (com bordas), de centro pálido e não pruriginosas. Poupa a face.
 

- Nódulos subcutâneos: Surgem tardiamente em superfícies extensoras (ex: cotovelos). Estão fortemente correlacionados com a gravidade da cardite.
 
Critérios Menores
- Artralgia (em populações de baixo risco, poliartralgia).
 - Febre (em baixo risco: > 38,5°C).
 - Elevação de reagentes de fase aguda (VHS e PCR).
 - Prolongamento do intervalo PR no ECG.
 
Tratamento Específico
O tratamento da FR é dividido em fases:
- Erradicação do Estreptococo:
- Obrigatório para todos os pacientes com FR, independentemente da apresentação.
 - O objetivo é eliminar a bactéria da orofaringe. (Droga de escolha: Penicilina G Benzatina).
 
 - Terapia Anti-inflamatória:
- Artrite: Responde bem a AINEs ou salicilatos.
 - Cardite: Requer o uso de glicocorticoides.
 
 - Tratamento da Coreia:
- Utiliza-se haloperidol ou ácido valproico. Fenobarbital e corticoides também são opções.
 
 - Profilaxia Secundária:
- Fundamental para evitar novos surtos e a piora de lesões valvares prévias.
 - Esquema: Penicilina G benzatina (dose varia por peso) aplicada a cada 21 dias (3 semanas).
 - Duração: Varia conforme a gravidade da cardite:
- FR sem cardite: 5 anos após o último episódio ou até os 21 anos (o que durar mais).
 - FR com cardite (lesão leve residual): 10 anos após o último episódio ou até os 25 anos (o que durar mais).
 - FR com cardite (lesão moderada a severa): Até os 40 anos ou por toda a vida.
 - FR com cirurgia valvar: Por toda a vida.
 
 
 
Leia também: Identificando as diferentes doenças exantemáticas
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