Entenda as Epilepsias na Infância e Adolescência da semiologia à terapêutica prática

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O domínio das epilepsias na faixa etária pediátrica exige do médico residente a capacidade de integrar a neurofisiologia, a genética e a clínica. As provas de residência médica focam não apenas no manejo da crise aguda, mas no reconhecimento de síndromes eletroclínicas específicas e suas bases etiológicas!

Definições e Classificação das Epilepsias (ILAE 2017)

A distinção precisa entre os termos é o primeiro passo para o diagnóstico correto e é frequentemente explorada em questões teóricas.

  • Crise Epiléptica: Define-se como a ocorrência transitória de sinais e/ou sintomas decorrentes de atividade neuronal excessiva ou síncrona no cérebro.
  • Epilepsia: Doença caracterizada pela predisposição persistente do cérebro em gerar crises. O diagnóstico clínico é estabelecido por um dos seguintes critérios:
    1. Duas crises não provocadas (ou reflexas) com intervalo superior a 24 horas.
    2. Uma crise não provocada associada a uma probabilidade de recorrência igual ou superior a 60% (ex: presença de alteração estrutural em neuroimagem ou atividade epileptiforme no EEG).
    3. Diagnóstico de uma síndrome epiléptica específica.

Conceito de Epilepsia Resolvida: Aplica-se a indivíduos que ultrapassaram a idade de uma síndrome idade-dependente ou que permanecem sem crises há 10 anos, estando fora de uso de fármacos anticrise há pelo menos 5 anos.

Semiologia Ictal e Topografia Lesional

A análise detalhada da semiologia permite inferir a Zona Epileptogênica (região responsável pela geração das crises). Em provas, a descrição clínica da crise é a chave para identificar o lobo acometido.

Zona epileptogênica. Fonte: Acervo de Ilustrações do Grupo MedCof.

Epilepsias do Lobo Temporal

Caracterizam-se geralmente por início progressivo e pós-ictal prolongado.

  • Temporal Mesial: Envolve estruturas do sistema límbico (amígdala, hipocampo). Manifesta-se com auras epigástricas ascendentes, sintomas emocionais (medo, déjà vu, jamais vu) e automatismos orofaciais/manuais. Um sinal lateralizatório clássico cobrado em provas é a postura distônica do membro superior contralateral à zona epileptogênica, enquanto o paciente apresenta automatismos ipsilaterais (como roçar o nariz).
  • Temporal Lateral: Predominam alucinações auditivas, ilusões visuais ou vertigem. A evolução para crise tônico-clônica bilateral é mais frequente do que na mesial.

Epilepsias do Lobo Frontal

As crises são tipicamente breves, de início e término súbitos, com predomínio durante o sono e rápida recuperação da consciência (pós-ictal curto).

  • Área Motora Suplementar: Apresenta a “postura do espadachim” (extensão tônica assimétrica), onde a zona epileptogênica é contralateral ao membro estendido e ipsilateral ao membro fletido.
 Postura do Espadachim. Fonte: Acervo de Ilustrações do Grupo MedCof
  • Giro Pré-Central: Clonias contralaterais com a clássica marcha Jacksoniana (progressão das clonias seguindo o homúnculo motor).
  • Cíngulo Anterior: Automatismos hipermotores, pedalagem, expressão facial de medo e a fácies de chapeau de gendarme (boca invertida).

Epilepsias do Lobo Occipital

Manifestações visuais (alucinações simples como pontos luminosos ou complexas), amaurose ictal, desvio ocular tônico e sintomas autonômicos importantes, como vômitos ictais e cefaleia peri-ictal intensa (mimetizando enxaqueca).

Urgências Neurológicas: Crise Febril e Estado de Mal

Crise Febril

Ocorre entre 6 e 60 meses, na vigência de febre sem infecção do SNC. A distinção é vital:

  • Simples: Crise generalizada (tônico-clônica), com duração inferior a 15 minutos e não recorrente em 24h. O prognóstico é benigno e não exige exames complementares (EEG/Neuroimagem) na maioria dos casos.
  • Complexa: Focal, duração superior a 15 minutos ou recorrente em 24h. Associa-se a um risco aumentado de desenvolvimento de epilepsia futura.
  • Nota: A crise febril não requer tratamento anticonvulsivante contínuo profilático (fenobarbital ou valproato) na vasta maioria dos casos.

Estado de Mal Epiléptico (EME)

Definido operacionalmente como crise com duração igual ou superior a 5 minutos ou crises subentrantes sem recuperação da consciência entre elas. A abordagem terapêutica deve ser escalonada e rápida (“tempo é cérebro”):

  1. Estabilização (0-5 min): ABC, monitorização, acesso venoso e correção imediata de hipoglicemia (se presente).
  2. Terapia Inicial (1ª Linha): Benzodiazepínico.
    • Diazepam 0,3 mg/kg EV ou Midazolam 0,2 mg/kg EV/IM.
    • Na falta de acesso: Diazepam via retal ou Midazolam via nasal/bucal.
  3. Segunda Linha (persistência da crise): Fenitoína 15-20 mg/kg EV (atenção à velocidade máxima de infusão para evitar arritmias e hipotensão) ou Fosfenitoína.
  4. Terceira Linha: Fenobarbital 20 mg/kg EV ou Valproato de Sódio EV.
  5. EME Refratário: Indução de coma anestésico com Midazolam contínuo, Tiopental ou Propofol, necessitando de intubação orotraqueal e monitorização EEG contínua em UTI.
Fonte: Pinterest.

Síndromes Epilépticas Específicas por Faixa Etária

O reconhecimento sindrômico orienta o tratamento (evitando fármacos que pioram o quadro) e define o prognóstico.

Período Neonatal e Lactente (0-2 anos)

  • Epilepsias autolimitadas: Frequentemente associadas a canalopatias genéticas (ex: KCNQ2 na Neonatal Familiar, PRRT2 na Infantil). Caracterizam-se por desenvolvimento neuropsicomotor normal e remissão espontânea das crises.
  • Síndrome de West (Espasmos Infantis):
    • Tríade clássica: Espasmos epilépticos (em flexão ou extensão, em salvas) + Hipsarritmia (padrão caótico de alta voltagem no EEG interictal) + Regressão ou atraso do desenvolvimento.
    • Tratamento: Vigabatrina (1ª escolha, especialmente se associado à Esclerose Tuberosa) e Corticosteroides em altas doses (Prednisolona ou ACTH).
  • Síndrome de Dravet:
    • Encefalopatia epiléptica e do desenvolvimento grave, geralmente associada a mutação no gene SCN1A (canal de sódio). Inicia-se no primeiro ano de vida com crises febris complexas/prolongadas, evoluindo para crises refratárias e declínio cognitivo.
    • Alerta de Prova: São contraindicados os bloqueadores de canais de sódio (Carbamazepina, Fenitoína, Lamotrigina), pois podem exacerbar as crises. O tratamento envolve Valproato, Clobazam, Estiripentol ou Canabidiol.
  • Síndrome de Ohtahara: Encefalopatia precoce (< 3 meses), caracterizada pelo padrão surto-supressão no EEG e prognóstico neurológico reservado.

Infância

  • Epilepsia Rolândica (Autolimitada com Espículas Centrotemporais):
    • A epilepsia focal mais comum da infância. Apresenta crises focais motoras ou sensitivas na face/orofaringe, sialorreia, sons guturais e parada da fala, ocorrendo predominantemente durante o sono ou ao despertar. O EEG mostra espículas centrotemporais ativadas pelo sono.
    • Prognóstico excelente, frequentemente remitindo na adolescência e muitas vezes dispensando tratamento medicamentoso.
  • Síndrome de Panayiotopoulos:
    • Epilepsia autolimitada com crises autonômicas. O quadro clínico destaca-se por vômitos ictais recorrentes, palidez e síncope (“ictal syncope”), com crises frequentemente prolongadas (>30 min), mas de prognóstico benigno.
  • Síndrome de Lennox-Gastaut:
    • Encefalopatia epiléptica grave em pré-escolares.
    • Tríade: Múltiplos tipos de crise (tônica noturna, atônica/drop attacks, ausência atípica) + Deficiência Intelectual + EEG com ponta-onda lenta (< 2,5 Hz) difusa.
    • Tratamento é desafiador, utilizando combinações como Valproato, Lamotrigina, Clobazam, Rufinamida ou Canabidiol. Drop attacks refratários podem ter indicação de calosotomia.

Adolescência

  • Epilepsia Mioclônica Juvenil (EMJ):
    • Início típico entre 12-18 anos. Caracteriza-se pela tríade de crises: mioclonias (choques nos membros superiores, derrubando objetos), crises tônico-clônicas generalizadas e ausências. As mioclonias ocorrem tipicamente ao despertar.
    • Precipitantes clássicos: Privação de sono, estresse e consumo de álcool.

Tratamento: Ácido Valpróico é a droga de escolha. Em mulheres em idade fértil, deve-se ter cautela devido à teratogenicidade, optando-se por Levetiracetam ou Lamotrigina. Deve-se evitar Carbamazepina e Fenitoína, que podem piorar as mioclonias e ausências.

Outras Encefalopatias e Etiologias Específicas

  • Síndrome de Landau-Kleffner: Caracterizada pela agnosia auditiva verbal adquirida (a criança ouve, mas não compreende, simulando surdez) e regressão da linguagem. O EEG revela descargas contínuas durante o sono de ondas lentas (POCS). Requer tratamento agressivo (corticosteroides, benzodiazepínicos) para tentar preservar a função cognitiva.
  • Encefalite de Rasmussen: Epilepsia focal crônica progressiva de etiologia imunológica. Cursa com crises focais intratáveis (epilepsia partialis continua), hemiparesia progressiva e atrofia de um hemisfério cerebral na neuroimagem. O tratamento definitivo muitas vezes é a hemisferotomia funcional.
Encefalite de RAsmussen. Fonte: https://www.scielo.br/j/anp/a/5fbfm4N9hzFStPkCggb7grt/?format=html&lang=pt 
  • Deficiência do Transportador de Glicose tipo 1 (GLUT-1): Encefalopatia metabólica que cursa com epilepsia de início precoce, microcefalia e distúrbios do movimento que pioram com jejum. O tratamento padrão-ouro é a Dieta Cetogênica, que fornece corpos cetônicos como fonte alternativa de energia cerebral.

Terapêutica Farmacológica: Mecanismos e Efeitos Adversos

O conhecimento dos efeitos colaterais é frequente alvo de questões.

Tabela de efeitos adversos. Fonte: Acervo de Aulas do Grupo MedCof.

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