
A Síndrome de Guillain-Barré (SGB) é uma polirradiculoneuropatia desmielinizante inflamatória aguda de origem autoimune, caracterizada por fraqueza muscular progressiva e perda de reflexos. Com incidência de 1 a 4 casos por 100 mil habitantes, trata-se de uma emergência neurológica potencialmente grave, que exige reconhecimento precoce e intervenção imediata.
Este artigo aborda os aspectos essenciais da fisiopatologia e do diagnóstico da SGB, com foco na formação médica e em conteúdos relevantes para provas de residência.
Definição e fisiopatologia da Síndrome de Guillain-Barré
A fisiopatologia da Síndrome de Guillain-Barré está ancorada em um mecanismo autoimune no qual o sistema imunológico, após exposição a agentes infecciosos, passa a atacar estruturas do sistema nervoso periférico (SNP). Esse ataque ocorre devido ao mimetismo molecular, processo no qual antígenos de patógenos compartilham similaridades estruturais com componentes das membranas neuronais, como gangliosídeos.
Essa resposta imunológica leva à ativação de linfócitos T, produção de anticorpos e liberação de citocinas pró-inflamatórias, promovendo infiltrado inflamatório, depósito de complemento e destruição da bainha de mielina (na forma desmielinizante) ou do axônio (nas formas axonais). O resultado é a interrupção da condução nervosa, gerando fraqueza, paralisia flácida e perda sensitiva em graus variáveis, com progressão geralmente ascendente.
Variantes clínico-patológicas da Síndrome de Guillain-Barré
A AIDP (Polirradiculoneuropatia Desmielinizante Inflamatória Aguda) é a forma clássica e mais comum. Clinicamente, apresenta fraqueza ascendente simétrica, arreflexia e disfunção autonômica frequente.
Eletrofisiologicamente, há desmielinização com lentificação da condução nervosa e bloqueios de condução; patologicamente, observa-se infiltração inflamatória perivascular e desmielinização segmentar. O prognóstico é geralmente bom, com recuperação significativa em meses.
A AMAN (Neuropatia Axonal Motora Aguda) ocorre mais na Ásia e América Latina, associada a Campylobacter jejuni e anticorpos anti-GM1. Caracteriza-se por paralisia flácida rápida sem acometimento sensitivo significativo. Eletrofisiologicamente, há degeneração axonal motora pura com amplitudes reduzidas de potenciais motores; a patologia demonstra degeneração axonal primária sem inflamação significativa.
O prognóstico varia, mas alguns casos recuperam rapidamente pela reversão funcional dos nódulos de Ranvier.
A AMSAN (Neuropatia Axonal Motora e Sensitiva Aguda) é mais grave e menos comum, com acometimento motor e sensitivo importante. Eletrofisiologia evidencia degeneração axonal difusa com potenciais motores e sensitivos muito reduzidos ou ausentes; histologicamente, há perda axonal extensa. O prognóstico é pior, com recuperação lenta e frequentes sequelas residuais.
A Síndrome de Miller-Fisher (SMF), mais prevalente no Japão, apresenta a tríade clássica: oftalmoplegia, ataxia e arreflexia, frequentemente com anticorpos anti-GQ1b. Eletrofisiologicamente, pode ser normal ou mostrar alterações sensoriais discretas; a patologia sugere desmielinização em nervos cranianos. Entre variantes raras destacam-se a Bickerstaff encefalite do tronco (similar à SMF, mas com encefalopatia) e a paralisia faríngea-cervical-braquial. A distribuição geográfica reflete predisposições imunológicas e exposição a patógenos específicos.
Confira um quadro comparativo entre elas:
Subtipo | Manifestações Clínicas | Eletrofisiologia | Patologia | Distribuição Geográfica | Prognóstico |
AIDP (Polirradiculoneuropatia Desmielinizante Inflamatória Aguda) | Fraqueza ascendente simétrica, arreflexia, disfunção autonômica frequente | Condução nervosa lenta, latências prolongadas, bloqueios de condução (desmielinização) | Desmielinização segmentar e infiltrado inflamatório perivascular | Mais comum em Europa e Américas | Geralmente bom, recuperação em meses |
AMAN (Neuropatia Axonal Motora Aguda) | Paralisia flácida rápida, sem alteração sensitiva significativa | Amplitude reduzida de potenciais motores, condução preservada (axonal) | Degeneração axonal motora sem inflamação significativa | Predomina em Ásia e América Latina, associada a C. jejuni | Variável, alguns com recuperação rápida |
AMSAN (Neuropatia Axonal Motora e Sensitiva Aguda) | Fraqueza motora e sensitiva grave, evolução rápida | Potenciais motores e sensitivos muito reduzidos ou ausentes (axonal difusa) | Perda axonal extensa com degeneração walleriana | Mais rara, relatada em Ásia e América Latina | Pior prognóstico, recuperação lenta e com sequelas |
Síndrome de Miller-Fisher (SMF) | Tríade: oftalmoplegia, ataxia e arreflexia; pode preceder SGB clássico | Geralmente normal ou com alterações sensoriais discretas | Desmielinização em nervos cranianos; anticorpos anti-GQ1b | Mais prevalente no Japão e Leste Asiático | Bom, recuperação em semanas |
Outras variantes raras | Bickerstaff (oftalmoplegia + encefalopatia), Paralisia faríngea-cervical-braquial | Variável conforme subtipo | Semelhante à SMF ou AIDP | Casos esporádicos em várias regiões | Geralmente bom, mas Bickerstaff pode ser mais grave |
Etiologia e fatores desencadeantes
As principais infecções associadas ao desenvolvimento da Síndrome são:
- Campylobacter jejuni: Principal agente, ligado a variantes axonais mais graves;
- Citomegalovírus: Relacionado a formas desmielinizantes;
- Vírus Epstein-Barr e Zika: Com forte associação em surtos;
- Dengue;
- Covid-19.
A relação da SGB com vacinas é historicamente descrita (como no caso da vacina contra influenza em 1976), porém extremamente rara e, em muitos estudos atuais, não supera a incidência de base da síndrome. Revisões recentes reforçam que o risco de SGB após infecções virais, especialmente por COVID-19 ou influenza, é muito maior do que após a vacinação, justificando a recomendação vacinal.
Outros fatores desencadeantes incluem cirurgias recentes (especialmente ortopédicas e gastrointestinais) e condições imunológicas predisponentes, como doenças autoimunes prévias. Embora menos comuns, traumas e estresse imunológico intenso também podem precipitar a resposta autoimune desregulada que culmina na neuropatia.
Sintomas da Síndrome de Guillain-Barré
Os sintomas mais comuns da Síndrome de Guillain-Barré incluem:
- Sensação de formigamento ou dormência nas extremidades, que progride para fraqueza muscular nos braços e pernas;
- Fraqueza muscular, que pode começar nas pernas e se espalhar para o tronco, braços e rosto;
- Dormência ou formigamento nas mãos, pés e dedos;
- Dificuldade para falar, engolir ou mastigar;
- Alterações na visão;
- Problemas com o controle da bexiga ou do intestino;
- Batimentos cardíacos irregulares ou pressão arterial baixa.
O início dos sintomas pode ser súbito e evoluir rapidamente, em alguns casos, causando danos graves ao sistema nervoso.
Sinais de alerta e complicações potenciais
Os sinais de alerta incluem progressão rápida da fraqueza, envolvimento de músculos bulbares com disfagia e, principalmente, comprometimento respiratório. Pacientes com evolução em poucos dias ou incapacidade de deambular devem ser avaliados precocemente em ambiente hospitalar.
O monitoramento respiratório é essencial: a capacidade vital forçada (CVF) inferior a 15-20 mL/kg, queda rápida da CVF ou aumento da PaCO₂ indicam iminência de falência ventilatória. A oximetria de pulso deve ser acompanhada continuamente, mas a hipoxemia pode ser tardia, sendo a CVF um marcador mais sensível.
As manifestações autonômicas são frequentes e potencialmente fatais, com instabilidade hemodinâmica (hipertensão ou hipotensão súbita), arritmias cardíacas e alterações de sudorese. Episódios de bradicardia grave podem ocorrer, exigindo monitorização contínua em unidade de cuidados intensivos.
Por fim, a disfunção vesical e intestinal é comum, com retenção urinária ou íleo paralítico, agravando o risco de complicações infecciosas e metabólicas. O manejo deve incluir sondagem intermitente, prevenção de constipação e vigilância para disautonomia grave, que pode evoluir rapidamente para colapso cardiovascular.
Diagnóstico da Síndrome de Guillain-Barré
O diagnóstico da Síndrome de Guillain-Barré (SGB) baseia-se em sinais clínicos típicos, com fraqueza muscular simétrica de início rápido, geralmente ascendente, associada a hipo/arreflexia. Formigamentos e dormência em mãos e pés são frequentes, e a progressão pode atingir músculos faciais e respiratórios em dias ou semanas.
A história clínica é essencial, por isso deve-se questionar infecções recentes (respiratórias, gastrointestinais), dor abdominal, diarreia e histórico vacinal. A associação temporal com infecções de 2 a 4 semanas é um dado importante para diferenciar de outras neuropatias.
Embora o diagnóstico seja principalmente clínico, exames complementares confirmam e excluem outras causas. O líquor mostra dissociação albumino-citológica (proteína alta com poucas células), e a eletromiografia evidencia desmielinização ou dano axonal.
Devido ao risco de progressão rápida e falência respiratória, a internação precoce é essencial, mesmo em casos aparentemente leves. A vigilância intensiva é indicada quando há disfagia, fraqueza em membros proximais ou sinais de disautonomia.
Exames
Os exames para o diagnóstico da condição geralmente são:
- Líquor (Punção lombar): Mostra a típica dissociação albumino-citológica – proteína elevada com poucas células, sugerindo processo inflamatório periférico.
- Eletromiografia (EMG) e estudos de condução nervosa: Identificam desmielinização ou comprometimento axonal, confirmando neuropatia periférica e distinguindo de doenças centrais como mielite transversa.
- Exames de sangue: Servem para descartar diagnósticos diferenciais, como alterações eletrolíticas, infecções ativas ou doenças autoimunes. Sorologias podem identificar agentes desencadeantes como Campylobacter jejuni ou citomegalovírus.
- Ressonância magnética: Não é essencial, mas pode mostrar realce das raízes nervosas e ajuda a excluir lesões de medula espinhal que cursam com quadro motor semelhante.
Tratamento da Síndrome de Guillain-Barré
Os tratamentos disponíveis são:
- Imunoglobulina intravenosa (IVIG): Tratamento de primeira linha, administrado por 5 dias, reduz a resposta autoimune e acelera a recuperação neurológica.
- Plasmaférese: Alternativa à IVIG, indicada em casos graves ou quando o tratamento inicial não está disponível; remove anticorpos patogênicos circulantes.
- Suporte respiratório: Ventilação mecânica é essencial em casos de falência respiratória, sendo indicada quando a capacidade vital forçada <15 mL/kg ou há hipercapnia progressiva.
- Controle autonômico e suporte clínico: Monitorização em UTI para tratar arritmias, instabilidade hemodinâmica e disfunção vesical ou intestinal; fisioterapia precoce para prevenir complicações motoras.
Cuidados de suporte fundamentais
Os cuidados de suporte são essenciais para reduzir complicações e mortalidade. A monitorização respiratória deve ser contínua, com atenção à capacidade vital forçada <15-20 mL/kg, PaCO₂ crescente ou sinais de fadiga muscular, que indicam necessidade de ventilação mecânica precoce.
A prevenção de tromboembolismo venoso inclui uso de heparina profilática e meias de compressão, pois a imobilidade prolongada aumenta o risco de TVP. O manejo da dor neuropática deve ser feito com gabapentinoides ou antidepressivos tricíclicos, evitando opioides quando possível.
Ademais, o suporte nutricional deve ser precoce, com dieta hipercalórica e, se necessário, via enteral para evitar perda muscular. A prevenção de úlceras de pressão requer mudanças frequentes de posição, colchões especiais e fisioterapia motora.
Por fim, as complicações autonômicas exigem vigilância intensiva: hipertensão ou hipotensão podem requerer ajuste com vasopressores ou anti-hipertensivos, e arritmias graves demandam monitorização cardíaca contínua. A abordagem deve ser multidisciplinar, com fisioterapia e reabilitação iniciadas precocemente para acelerar a recuperação funcional.
Prognóstico e reabilitação da síndrome de Guillain-Barré
A maioria dos pacientes com Síndrome de Guillain-Barré apresenta boa recuperação, com 80% readquirindo a capacidade de deambular em 6 meses. No entanto, cerca de 20% mantêm déficits motores residuais e 5-10% podem evoluir a óbito, geralmente por complicações respiratórias ou autonômicas.
Os fatores associados ao pior prognóstico incluem idade avançada, necessidade de ventilação mecânica, subtipo axonal (AMAN/AMSAN) e atraso no início do tratamento imunomodulador. Esses pacientes tendem a apresentar recuperação mais lenta e maior risco de sequelas permanentes.
O tempo médio de recuperação varia de 6 a 12 meses, mas pode se estender por até 2 anos em casos graves. Sequelas como fraqueza distal, fadiga crônica e neuropatia sensitiva persistente são possíveis, impactando a qualidade de vida.
Assim, a reabilitação deve ser progressiva e individualizada: na fase aguda, prioriza-se prevenção de contraturas e úlceras; na fase subaguda, inicia-se fortalecimento gradual e treino de marcha; e, na fase crônica, foca-se em recuperação funcional, fisioterapia intensiva e terapia ocupacional, com suporte psicológico quando necessário.
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Aula completa sobre Guillain-Barré: diagnóstico e tratamento em detalhes
Nesta aula, o Doutor Leonardo Bernardes falará sobre a Síndrome de Guillain-Barré, com foco nos conceitos iniciais, fisiopatologia, quadro clínico, diagnóstico, tratamento e diagnósticos diferenciais.